Como � �bvio, os fil�sofos n�o se limitam a enunciar problemas intrincados e sutis. Querem tamb�m resolv�-los. � por isso que constroem teorias, tamb�m elas muitas vezes intrincadas e sutis. No entanto, se n�o percebermos que problemas procuram eles resolver � altamente improv�vel que compreendamos e possamos apreciar o valor das suas teorias: o mais natural � ficarmo-nos pela aceita��o ou rejei��o epid�rmica (e que muitas vezes � falsamente identificada com uma postura est�tica, como se gostar realmente de uma sinfonia pudesse ser uma atitude a cr�tica e epid�rmica). "Penso, logo existo" � a f�rmula m�gica da teoria de Descartes. Mas que significa isto realmente? Por que se deu ele ao trabalho de escrev�-lo? Que procurava ele resolver com o �cogito � (o termo com que a sua teoria � conhecida)? Estas s�o as perguntas pr�vias que t�m de orientar a nossa compreens�o de uma teoria filos�fica.
Posteriormente, temos de tentar compreender os labirintos da teoria que estamos a estudar. Como � que a teoria funciona? E funciona? N�o ter� alguns problemas de concep��o? Por exemplo, poder� Descartes, na situa��o em que se coloca, saber realmente que pensa e que existe? E tratar-se-� a express�o que enuncia o princ�pio da sua teoria ("penso, logo existo") de uma infer�ncia, como o indica a palavra "logo"? Ou querer� ele apenas dizer que, por mais que duvide de tudo, a condi��o de possibilidade para poder duvidar � existir e pensar? E como se articula o resto da sua teoria com este princ�pio t�o b�sico? Como consegue ele inferir a exist�ncia de Deus e do mundo a partir deste princ�pio t�o b�sico? Estar�o essas infer�ncias corretas? Ou ter� cometido erros? Este � o tipo de avalia��o cr�tica que o estudante ter� de fazer, de forma progressivamente mais minuciosa e sistem�tica, ao longo do seu estudo.
1.2.1.3 Os argumentos.
Muito bem, estive a fazer um bocadinho de batota . n�o comecei por falar do mais importante de tudo em filosofia - os argumentos. Mas espero que, depois de ler esta se��o, se perceba subitamente que todo o trabalho que descrevi nas se��es anteriores n�o � poss�vel realizar sem argumentos. Precisamos de argumentos para nos convencer que o problema do conhecimento de Descartes � realmente um problema e n�o uma fantasia de um soldado aborrecido fechado num quarto aquecido. Precisamos de argumentos para nos convencer que as causas filos�ficas de certo problema s�o estas e n�o aquelas, e que as suas conseq��ncias n�o s�o estas mais aquelas. E precisamos de argumentos para nos convencer que a teoria consegue realmente resolver o que pretendia resolver e que � verdadeira e n�o apenas um agregado de frases talvez atraentes mais escandalosamente afastadas da verdade.
E o que s�o argumentos?
Os argumentos s�o raz�es que apresentamos para sustentar uma qualquer afirma��o. H� v�rios tipos de argumentos: dedutivos, por analogia, causais, de autoridade, atrav�s de exemplos. Para todos eles h� regras que nos ajudam a apreciar o seu valor. � por isso que estudar um livro como �A Arte de Argumentar� � importante.
Muitas vezes os fil�sofos s�o lidos mais ou menos com a mesma atitude com que os gregos consultavam o or�culo e os portugueses l�em o hor�scopo: acriticamente. Esta atitude � muito bizarra porque, tal como as profecias oraculares e as prescri��es dos hor�scopos, os fil�sofos contradizem-se. De maneira que � muito dif�cil l�-los a todos como fontes de verdade: n�o podem ter toda a raz�o. Pode ser que um deles tenha raz�o; mas mesmo que queiramos tomar a atitude arriscada de defender que era Kant, ou Descartes, ou Arist�teles, ou Russell, ou Frege que tinha raz�o, se o quisermos fazer de forma razoavelmente racional teremos de mostrar que t�m de fato raz�o. A alternativa � aceitar aquele fil�sofo cujas teorias v�o ao encontro dos nossos pr�-conceitos. Mas isto �, claramente, o contr�rio de uma atitude cr�tica, que � exatamente o que caracteriza, supostamente, a filosofia.
� muito mais prov�vel que todos os fil�sofos, como todos os cientistas e todas as pessoas em geral, tenham a sua cota de verdade e falsidade - misturadas, como sempre. Tamb�m aqui, o que se imp�e � o estudo cuidadoso das suas teorias e argumentos, com o objetivo �ltimo de destrinchar um bocadinho mais a verdade da falsidade, do erro e da ilus�o - essas constantes humanas a que alguns, talvez tocados pelos deuses, dizem ter escapado.